O Sol na Cabeça, de Geovani Martins, é uma ficção real demais!
- Leonardo Rodrigues
- 13 de jan. de 2023
- 4 min de leitura
Atualizado: 4 de dez. de 2024
O livro de contos de Geovani Martins machuca e faz parecer que realmente o Sol está te queimando.

No final de 2021, assisti a uns stories no Instagram do escritor e jornalista Chico Felitti e neles ele apresentava os melhores livros lidos por ele naquele ano. O sol na cabeça era um deles e como eu lia pouquíssimos livros de contos na época, resolvi colocá-lo na minha lista de leituras de 2022. Nada, porém, saiu como o planejado em 2022 e a leitura de O sol na cabeça foi postergada até agora, e talvez eu sinta um leve arrependimento por não tê-lo lido antes.
Os treze contos presentes em O sol na cabeça, do carioca Geovani Martins, representam belamente dois aspectos que eu acho de mais interessante e de mais virtuoso na literatura: primeiro, a capacidade que ela tem de transformar sujeitos "comuns" em personagens literários marcantes; segundo, a possibilidade que a literatura tem de se reinventar de acordo com o contexto no qual ela é produzida. A origem da literatura remonta à antiguidade, mas ela é tão atual que cada vez mais obras memoráveis são produzidas e marcam de alguma forma seu caminho pela humanidade. Se, num passado muito distante obras gregas representavam uma Grécia de um passado distante; se, num passado não muito distante, brasileiros representavam um Brasil de um passado não muito distante, Geovani Martins, um carioca dos morros da atualidade tenta representar um Rio de Janeiro que talvez seja atual e real demais.
A obra não é de agora. Foi publicada em 2018 pela Companhia das Letras, mas alguns dos contos já haviam sido publicados em uma revista antes da publicação oficial em livro. Mas os quatro, quase cinco, anos que nos separam da data da publicação do livro não faz dele menos atual nem menos real.
Só queria saber de jogar o futebol dele e jogava fácil! Até hoje vagabundo fala que era papo de virar profissional [...] Mó saudade daquele filho da puta, na moral.
Primeiramente, como dito, os contos de Geovani Martins pega jovens de comunidades cariocas, muitas e muitas vezes esquecidos pela sociedade (lembrados apenas em suas mortes precoces, de vem em quando, nos jornais), e os colocam como protagonistas de suas próprias histórias. Essa inversão de papéis, entretanto, acaba por revelar as realidades destes que agora são os contadores das narrativas e é uma realidade que machuca o leitor - digo isso sabendo que tenho privilégios o suficiente para não fazer ideia (além do senso comum) do que acontece nos morros do Rio. Ainda assim, os lapsos dessa realidade presentes nos contos são capazes de inspirar um sentimento genuíno de revolta pela ordem social vigente nesses locais.
Isso acontece, pois os narradores e personagens são muito autênticos, frutos, muito provavelmente, da vivência do próprio autor. Em "Rolézim", primeiro conto do livro, o narrador-protagonista narra uma ida à praia com os amigos para fumarem alguma coisa e passarem o dia. O enredo é simples, mas a narração do protagonista revela tantas camadas acerca de sua vida e de tudo pelo que ele e sua família têm passado, que quando o conto acaba, com uma resolução até simples, você percebe que soltou o ar preso durante toda a leitura. Essa sensação continua na maioria dos contos, em especial no "Roleta-russa", em que uma criança narra o dia em que pegou a arma de seu pai e levou para brincar com os amiguinhos de polícia e ladrão, e no "Espiral", em que o narrador reflete sobre os modos como as pessoas o enxergam em comparação com o modo como realmente é.
Nesse último conto citado, em especial, o narrador, em determinado momento, começa a seguir uma senhora que sempre o olhou como se fosse assaltá-la a qualquer momento. Isso faz com que o narrador-personagem comece a segui-la para realmente dar um motivo para suas reações preconceituosas. Em certo momento, ele se repreende e começa a pensar que a senhora poderia ter família, ele pensa nos prováveis netos dela. Mas a compaixão dura pouco, pois a verdade é dura:
Esse estado de culpa durou pouco, logo lembrei que aquela mesma velha [...] com certeza não imaginava que eu também tivera avó, mãe, família, amigos, essas coisas que fazem nossa liberdade valer muito mais do que qualquer bolsa, nacional ou importada.
Essa capacidade que as personagens têm de expor suas realidades é o segundo ponto mais marcante desses contos. Aqui, o autor faz o que a literatura melhor propicia: transforma sua realidade em pano de fundo para suas narrativas, faz do contexto contemporâneo, marcado por injustiças e por autoritarismos, material literário da maior qualidade. Se as personagens foram retiradas do anonimato e colocadas no papel de protagonistas, a periferia carioca também se eleva a cenário, a espaço literário capaz de revelar suas frágeis relações e suas, ainda mais frágeis, estruturas sobre as quais essas personagens se instalam.
Tudo isso resulta em contos que partem da realidade, mas de uma realidade real demais, pois os espaços e as personagens são genuínas demais. Dois tipos de leitores principais provavelmente terão leituras diferentes dos contos: aqueles que vivem a realidade retratada vai achar o livro até banal, nada de muito extraordinário; aqueles, como eu, que não fazem ideia de como essa realidade é injusta, vai se impressionar com o realismo exacerbado da narrativa. E essa incompatibilidade apreciativa é o que eu acho mais louvável no livro de Geovani Martins: nos faz perceber que o que é chocante para nós, é o dia a dia de outras muitas pessoas.
Por hoje, é só. Espero que minhas palavras tenham servido de alguma coisa e, caso leiam ou tenham lido O sol na cabeça, vamos conversar nos comentários do post ou nas redes sociais: @leonardojrod
Até a próxima!
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