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As coisas que perdemos no fogo, de Mariana Enriquez: os terrores da vida real

Atualizado: 4 de dez. de 2024

Mariana Enriquez, em narrativas assustadoras, nos instiga a pensar n'As coisas que perdemos no fogo


Antes de começar a falar do livro propriamente dito, é interessante notar que, num incêndio, as coisas não se perdem, mas se transformam em cinzas, se transformam em algo que nunca mais vai ser o que fora antes. Esse é o mote que guia os contos desse livro interessantíssimo da escritora argentina, Mariana Enriquez, publicado pela Editora Intrínseca no Brasil em 2016.


Então, quais são as coisas que se perdem no fogo? Resumidamente, o livro reúne contos inquietantes que julgo ser de suspense e/ou de terror, alguns mais outros menos assustadores, que tratam sobre coisas que perdemos durante nossas vivências. Os contos se estruturam com uma narrativa sempre rápida, com acontecimentos frenéticos e com personagens femininas geralmente fortes. Mesmo quando se apresentam fracas inicialmente, essas protagonistas mostram uma força talvez até estranha (estranha, para mim, é a definição desse livro) contra as adversidades que aparecem em suas histórias. Essas personagens são, na maioria dos casos, as narradoras de suas histórias e isso contribui, a meu ver, para a construção do suspense necessário em cada narrativa.

Ela me olhava, ansiosa e assustada, mas não confusa: estava vendo algo. Porém não havia nada em cima da privada.

Dessa maneira, os contos são divididos em duas partes: o que se conta (a narrativa estranha em si) e o que se quer contar (os entretextos presentes nas subnarrativas desses contos). O que se conta fala de perdas visíveis na sociedade, ao passo que o que se quer contar, e essa parte é muito subjetiva, embora tenha um direcionamento para algum assunto sensível relacionado a vivência de mulheres, trata, como mencionado, de perdas psicológicas dos indivíduos, principalmente das mulheres na sociedade atual; perdas que, como eu já disse, são muito mais uma transformação de algo em cinzas que uma perda propriamente dita.


Há, portanto, um resquício do que se tinha, um resquício cinza, triste e assustador.


Um exemplo, em “O menino sujo”, primeiro conto, narra-se a história de uma mulher que vive sozinha (ela jura que é por escolha, mas fica aquela sensação de que a sua solidão é mais uma consequência de algo que uma escolha racional) no subúrbio de Buenos Aires, numa parte da cidade muito perigosa. Certo dia, uma criança suja que vive nas ruas do subúrbio aparece na sua casa e, dessa visita, surgem questionamentos e inquietações na mente dessa personagem e esses questionamentos e inquietações conduzem a protagonista a um espiral de sofrimentos; isso, por um lado, é o que se conta e o melhor: o leitor não sabe exatamente se as coisas realmente aconteceram. O que se quer contar, por outro lado, pode ser sobre a solidão e até sobre um possível sonho de maternidade frustrado por diversos motivos.


O resquício que sobra aqui é o da angústia e o de uma solidão que machuca.

Todos caminhamos sobre ossos, é uma questão de fazer buracos profundos e alcançar os mortos encobertos.

Em “O quintal do vizinho”, a protagonista sofre um trauma também relacionado a crianças e começa a ser perseguida por uma criança amarrada que é vista, por ela, no quintal do vizinho. Também, a narrativa é confusa e faz com que o leitor não consiga definir até que ponto os acontecimentos estão, de fato, acontecendo. Sendo um dos contos mais assustadores, essa história faz com que o leitor fique arrepiado com os acontecimentos narrados. No nível das interpretações, fica clara a relação entre essa perseguição que a mulher sofre com a culpa que ela sente pelo que aconteceu no seu passado; nesse caso, a coisa perdida é o sossego, e a cinza que fica é o trauma.


Para que este texto não fique muito comprido, pararei por aqui, mas é bom que vocês saibam que é exatamente esse o resumo desse livro: narrativas inquietantes que tratam de perdas de uma forma assustadora, o que faz sentido, considerando o caráter assustador das perdas "pelos fogos" que sofremos. Mas é bom saber que o livro não responde quais são as coisas que perdemos no fogo, afinal, elas dependem da vivência de cada um de nós. Ao final da leitura, ao invés de termos uma lista definitiva de coisas que perdemos, temos, na verdade, uma lista em crescimento de tantas coisas que já perdemos que nos deixa extasiado por um instante.


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