Dentes Negros, o APOCALIPSE diferenciado de André de Leones
- Leonardo Rodrigues
- 17 de abr. de 2020
- 5 min de leitura
Atualizado: 4 de dez. de 2024
Um romance instigante e vazio (no sentido bom da palavra) que surpreende por conta da abordagem diferenciada sobre o apocalipse

Dentes Negros, do premiado escritor silvaniense André de Leones, publicado em 2011, trata do isolamento e da solidão em um Brasil pós apocalíptico em que poucas pessoas conseguiram sobreviver a uma doença mortal cuja principal característica era deixar suas vítimas com os dentes negros e as bocas escancaradas, como um último suplício pela vida. Diferentemente de outras narrativas pós-apocalípticas conhecidas por grandes cenas de ação, de perigos e de protagonistas heróicos que buscam a salvação de si e, principalmente, da humanidade, aqui Leones utiliza-se de outra abordagem, que deixa claro que, para os sobreviventes da doença, pouco resta de esperança e muito sobra de desolação.
Ninguém aqui teve infância, ela diz. E agora estamos envenenados até os ossos.
Como é comum das resenhas, inicio esta comentando sobre os componentes do romance de André de Leones, o que quase não costumo fazer, mas que é interessante nesse caso. O enredo é narrado, silenciosamente, por um narrador onisciente que conhece as personagens física e psicologicamente, assim como tem acesso aos sonhos e pensamentos delas. O livro adota um tempo narrativo marcado pelo aspecto psicológico, repleto de flashbacks e baseado nas impressões e vivências que têm as personagens, e os locais onde se passam a história são os vazios formados no Brasil depois da doença dos dentes negros. Guarde essas informações.
Depois dessa apresentação, é importante continuar fazendo um paralelo com outras distopias muito conhecidas dos leitores, pois, como eu já disse, Dentes Negros se destaca justamente por conta de sua abordagem diferenciada. Se, do lado das distopias prototípicas, existem protagonistas cujas jornadas são baseadas na famosa jornada do herói (se vocês quiserem saber um pouco mais sobre isso, digam nos comentários. Será interessante aprofundar um pouco mais sobre esse assunto), em que eles num primeiro momento estão descrentes e alheios aos acontecimentos ao seu redor, do lado de cá, Leones constrói personagens destruídos pela tragédia e que, frente a nova realidade, buscam apenas adquirir sua humanidade novamente, perdida com a tragédia.
A forma que tais personagens encontram para recuperar a humanidade é distinta. Hugo e Renata, dois dos protagonistas, lançam mão do sexo como um refúgio para a situação em que encontram suas almas dilaceradas. Mas há quem, frente à morte inevitável (e a morte aqui é tanto a física como a psicológica), decide antecipá-la.
O que eu estou fazendo aqui? O pesadelo dela é estar viva.
Outro ponto interessante, também, é que ao contrário de outros textos distópicos, Dentes Negros não se compromete em ser autoexplicativo. Que a Calamidade, como o período da doença era chamado no livro, aconteceu e marcou, negativamente, os seres humanos, isso é fato, mas o narrador foca apenas em demonstrar como foi o impacto em si, como ele aconteceu e quais consequências ele causou. As informações sobre a Calamidade e sobre os acontecimentos durante esse período são vagas, assim como são vagas nas cabeças das próprias pessoas que vivenciaram tudo.

E esse fato merece destaque pois, toda a obra é planejada para que a sensação de vazio, solidão e angústia de fato permeie todo o livro e transpasse para o leitor. Como mencionado, todos os componentes (narrador, personagens, espaço, tempo e enredo) se convergem para a composição de uma narrativa do desolamento. As informações são esparsas e nem personagens, nem narrador, nem leitor sabem o que de fato aconteceu. Os diálogos, secos e com poucas palavras, denotam que, agora, no Brasil onde vivem, não há mais assunto a ser falado, pois as conversas surgem por meio das experiências vividas e das memórias guardadas, mas as memórias e experiências dos sobreviventes são doloridas demais, falar do presente é desolador demais e pensar num futuro é incerto demais. A falta de personagens e o vazio figurativo do livro, graficamente marcado por parágrafos e períodos curtos, refletem o vazio literal do país e, mais precisamente, do sertão goiano, de onde Hugo é originário.
Estamos todos doentes, e doentes até os ossos. A doença está dentro da gente e nunca vai sair. Está dentro da gente e nunca vai sair, ele repete.
Esse trecho, na minha opinião, é o resumo de Dentes Negros, pois a narrativa é desenvolvida a partir da ideia de que algumas coisas são inevitáveis e a pior delas é a morte. Mais que isso, o autor também trata do trauma e da marca que a doença e suas consequências, o que, extrapolando a história do livro, podemos relacionar com muitos outros momentos traumatizantes de nossas vidas reais, como guerras e outras tragédias, deixaram nos sobreviventes. Acredito, inclusive, que a personagem que diz tal frase quis dizer que a doença de fato estava dormente em seus corpos, mas sim, psicologicamente.
E dessa forma, André de Leones constrói uma narrativa sugestiva, que apenas sugere o início, o meio e o fim. Na teoria literária existe um componente da narrativa chamado ambiente. A ambientação é responsável por diversos efeitos que o autor por ventura queira utilizar em suas narrativas; em Dentes Negros, a ambientação inerte reflete o estado de espírito das personagens vazias e, além disso, sugere acontecimentos futuros. Em determinado trecho, Hugo conta a Renata sobre uma história envolvendo ele e seu pai violento; na ocasião, o protagonista diz que, prevendo a ira do pai depois de ter aprontado algum delito infantil, correu para fora, numa esperança ersatz de que escapasse do castigo, entretanto, ele "corria sabendo que ia parar no momento em que o pai dissesse o seu nome outra vez. O pai sequer precisaria gritar de novo". Tal trecho acontece no início da narrativa, sugerindo que o a doença e as marcas que ela lhes infrigiriam, de uma forma ou outra, eram inevitáveis.
Dentes Negros, resumidamente, é um livro de apocalipse diferenciado. Suas bases são as consequências psicológicas da tragédia e seus atrifícios são as sugestões e incertezas. Não se sabe a origem das coisas, pois o começo da Calamidade é desconhecido assim como o começo do livro, que é uma trivial conversa entre dois sobreviventes, que até então não se conheciam, em um bar. O meio, com o tempo meio embaralhado, sugere o caminho que o leitor, incerto como as personagens, deve tomar. E o fim é apenas uma sugestão de que o fim mesmo já havia acontecido bem antes do começo, pois a obra trata exatamente disso: da tentativa de se ter uma vida depois do fim.
Por hoje é só, pessoal.
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Forte abraço, à distância, claro. Até a próxima.
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