top of page

O SANGUE FRIO de Truma CAPOTE

Atualizado: 4 de dez. de 2024

De uma forma pretenciosa e criativa, a narrativa de Capote anda na corda bamba entre a não-ficção e a ficção.

ree

Em 1966, depois de anos de pesquisa – a qual resultou numa aproximação estranha do pesquisador aos pesquisados – e depois de publicada em partes na revista The New Yorker (durante o ano anterior), é publicada a pretenciosa obra A Sangue Frio do jornalista Truman Capote, que foi, utilizando-se de uma expressão bastante clichê, mas adequada a esse contexto, a divisora de águas na carreira de escritor de Capote. “Divisora de águas”, pois foi com A Sangue Frio que Truman Capote conseguiu ter o devido reconhecimento no âmbito literário ao “criar”, como ele se gabava, ainda que com indícios do contrário, um novo gênero: o romance de não-ficção.


A obra tem a pretensão de reconstruir e esmiuçar o caso que chocou os Estados Unidos em 1959, qual seja o assassinato “a sangue frio” da família Clutter na cidade de Holcomb no estado do Kansas. Para isso, Truman Capote vai à cidade logo depois dos assassinatos, enquanto o caso ainda estava com poucos, para não dizer com nenhum, direcionamentos com o intuito de fazer uma apuração jornalística do caso a fim de recriar (e o uso desse termo é muito importante na análise breve que proponho a fazer aqui) o contexto que culminou os assassinatos, bem como o evento da chacina em si e o pós-chacina, mostrando as consequências aos envolvidos no crime, assim como o estado de espírito deles e das pessoas de Holcomb, de certa forma, traumatizadas pelo acontecimento.


Como já mencionado, aqui, com A Sangue Frio, “nasce” o romance de não-ficção (o uso das aspas apenas se faz necessário para não ir contra as dezenas de críticas, posts em blogs, listas em sites, etc., que salientam que, apesar das afirmações de Capote, já haviam, antes dele, outras obras com características parecidas com as de seu A Sangue Frio, as quais também se caracterizariam como romances de não-ficção, embora, de fato, o gênero tenha sido batizado por Capote). E, assim que levamos essa questão em consideração, já entramos na seara sobre a qual quero discutir nesse texto: a de que, apesar de um texto jornalístico, com características muito próprias da apuração jornalística, Capote percorre um caminho de escrita e composição de sua obra que mais parece uma corda bamba que ora pende para a realidade ora para a ficção.

Nas mãos de Truman Capote, o exame exaustivo da realidade é mais que exemplo de jornalismo brilhante: é também um estímulo à capacidade de reinventá-la.

Ao que parece, essa característica marcante do texto do escritor norte-americano, qual seja a de permear a realidade e a ficção, é um caso exemplar de um dos perigos que correm os jornalistas e pesquisadores de qualquer área: a aproximação brusca do pesquisador aos pesquisados (ou ao objeto pesquisado) que pode atrapalhar, de alguma forma, a obtenção de resultados que não estejam “infectados” pelas opiniões pessoais do pesquisador/autor. É claro que esse não é o único motivo que fazem com que alguns textos jornalísticos sejam tão carregados de ficções em sua narrativa; às vezes, o intuito do autor é realmente esse: criar uma narrativa ficcional baseada em sua pesquisa (como é o caso de uma obra do brasileiro Ivan Sant’anna, Herança de Sangue, de 2012, que apesar da pesquisa documental e bibliográfica, ela é predominantemente ficcional).


No caso específico de Capote, sua metodologia, por assim dizer, baseava-se em entrevistas com os moradores de Holcomb e em pesquisas sobre a investigação que corria no distrito policial do condado e no FBI. Dessa forma, o autor conseguiu, juntamente com sua amiga e ajudante Harper Lee (sim, a autora do ganhador do Pulitzer, O Sol é para todos), construir um panorama de como viviam os integrantes da família Clutter, assim como suas características mais peculiares, o que resultou numa riqueza de detalhes da vida (e morte) deles na narrativa (e essa riqueza de detalhes, de uma forma ou de outra, já sinaliza uma literarização da história).

ree

De todo modo, essa metodologia continuou sendo empregada também quando os dois suspeitos do crime, Perry Smith e Richard Hickock, foram presos, já que o jornalista conseguiu permissões para entrevistar os dois homens. É aí que acontece o turning point da história da composição de A Sangue Frio. A narrativa, até então uma futura obra de crime (como diz Ivan Lessa na apresentação da 16a reimpressão de 2020 da versão publicada inicialmente pela Companhia das Letras em 2003), passa a ser uma análise psicológica da condição dos assassinos. Devo deixar claro que a obra não é apenas isso, mas torna-se, também, isso.


Há uma des-demonização dos assassinos, uma vez que agora a narrativa também passa a analisá-los de uma forma menos unilateral (apenas do lado julgador) e mostra-os como seres humanos que, por conta de uma série de fatores, se tornaram assassinos a sangue frio. Vale notar, inclusive, que é da aproximação de Capote aos assassinos e da inserção da história deles na narrativa que surge grande parte das críticas. Como apresentado por Stanley Kauffmann, ainda em 1966, apesar das qualidades narrativas da obra de Capote, “not every critic was immediately enamored of it” (nem todo crítico ficou imediatamente apaixonado pela obra) (The New Republic, 1966).

“‘Por que esse assassino ou assassinos’, disse Perry, lendo em voz alta. “Está errado. A gramática. Devia ser ‘porque esse assassino ou esses assassinos’”

Além disso, essa aproximação do autor com os investigados, principalmente com Perry Smith, com o qual, dizem boatos, Capote teve um affair, possibilitou que ele pudesse escrever uma narrativa ambígua, no sentido de que muitas interpretações podem ser feitas a partir da leitura de A Sangue Frio (outra característica própria da literatura). Se, por um lado, os leitores podem ser suscitados a sentir uma espécie de revolta pelo crime, por outro, a narrativa também propicia uma leitura acerca das injustiças sociais que levaram Smith e Hickock a fazerem o que fizeram (o que o autor não aponta como justificativa ao crime, mas como motivos que contribuíram para que isso acontecesse); ainda, a narrativa questiona o “sangue frio” dos assassinos da mesma forma que questiona o “sangue frio” da justiça que não hesita em condená-los à pena de morte, ainda que houvesse indícios (e até provas) de que eles sofriam de algum distúrbio mental.


Então, por fim, é nisso que a narrativa tem seu maior êxito: todas as pessoas envolvidas no assassinato, sejam as vítimas, os assassinos e até mesmo os investigadores são apresentadas como seres humanos que podem ser bondosas e queridas pela comunidade em que vivem, como a família assassinada; podem ser excluídos socialmente por determinados motivos, o que pode levar a um ato infame e moralmente monstruoso. A narrativa jornalística ambígua de Capote é o manifesto dessa nova leva de jornalismo literário que, para se afirmar, não necessariamente precisa informar o leitor de forma estanque como se fazia anteriormente.


Enfim, é isso! A Sangue Frio foi uma das minhas primeiras leituras de 2021 em uma época em que uma ressaca literária pesada recaía sobre mim e a narrativa me prendeu de uma forma muito boa.


Para quem gosta de não-ficção, a obra de Capote é uma ótima indicação; para quem gosta de ficção, A Sangue Frio é um prato cheio.


Até a próxima!


Link para ler a crítica completa de Stanley Kauffmann no The New Republic, em inglês:

https://newrepublic.com/article/114887/stanley-kauffmann-truman-capotes-cold-blood


Comentários


bottom of page