TODO goiano deve ler: A Casa - Chico Felitti
- Leonardo Rodrigues
- 2 de mai. de 2021
- 4 min de leitura
Atualizado: 4 de dez. de 2024
Por meio de uma narrativa irônica e quase visual, Felitti mostra o contraste e a contradição de uma vida de aparência e ostentação regada por crimes e medo.

A eclosão do escândalo de João de Deus no final de 2018, depois da denúncia feita em um programa da maior emissora de TV do Brasil e uma das maiores do mundo, não me chocou na época (talvez por conta de nunca ter de fato me impressionado com a mediunidade de João de Deus e seus feitos sobre humanos), mas foi o pontapé para, paralelamente às investigações oficiais, o repórter Chico Felitti ir a Abadiânia (GO) e construir uma base de informações que se consumaria em A Casa: A história da Seita de João de Deus, publicado em meados de 2020 pela Todavia.
No fim de 2019, um véu de silêncio ainda cobre Abadiânia. Vai fazer um ano que essa cidade entre Goiânia e Brasília está orfã de seu filho mais célebre.
Chico é um repórter premiado, tendo ganhado os prêmios Comunique-se e Petrobrás de Jornalismo, e já tinha escrito o livro Ricardo e Vânia, de 2019, que conta a história de uma das personalidades mais conhecidas e, ainda assim, renegada da sociedade paulistana, o Fofão da Augusta. De todo modo, durante o ano de 2019, o foco de suas investigações jornalísticas foi outra pessoa, desta vez uma pessoa da elite goiana: o médium de cura famoso mundialmente que respondia/responde pela alcunha de João de Deus.
A Casa, então, propõe-se a contar a "história da seita de João de Deus" e, para isso, Felitti utiliza de uma estratégia narrativa que aproxima os fatos narrados do leitor por meio da inserção do seu "eu" narrativo que ora conta suas experiências na cidade de Abadiânia enquanto colhia informações ("[passei] meses mergulhado em documentos [...] e centenas de horas tentando convencer Abadiânia a contar sua história") ora apresenta suas interações com as "personagens" apresentadas no livro ("A pastora Simone Soares da Silva me cumprimenta com um aperto de mão e senta na sala").
Esse fato contribui para, mais do que a aproximação do leitor aos fatos, uma ligação do leitor às personalidades citadas na narrativas, já que é inevitável uma sensibilização, por parte de quem está lendo, pelas vítimas que narram sua história; ou, ao contrário, uma aversão à figura messiânica de João de Deus e aos seus braços direitos.
Ainda sobre o aspecto narrativo, A casa é um livro interessante - e talvez essa palavra passe a ideia de que o livro seja apenas isso, interessante, o que já deixo claro que não é o caso. Pelo contrário, o livro de Felitti é muito bem escrito e a história de João de Deus é contada de forma irônica (o que é uma marca registrada do autor, que utiliza da ironia em seu Ricardo e Vânia, em suas colunas jornalísticas e em seu famoso podcast "Além do Meme" que investiga a origem e o desenrolar da vida de pessoas que se tornaram memes).
De todo modo, digo que A Casa é um livro interessante, pois sua forma narrativa se embrenha com a narrativa da história que é contada pelas suas páginas de modo que a reconstrução da história de João de Deus como uma figura mítica goiana, história essa cheia de contradições e de incongruências, se relacione diretamente com o modo contrastante de como os eventos narrados em A casa e os capítulos do livro são dispostos. Os eventos se intercalam entre curas e crimes; entre fama e assassinatos; entre viagens internacionais e medo.

Se, inicialmente, no primeiro capítulo, é narrada a chegada de João Teixeira de Faria às terras de Abadiânia (quando a cidade goiana ainda não passava de um amontoado de meia dúzia de casas ao redor de uma igreja) com o intuito de tornar a cidade a sede de seu centro de cura; no capítulo seguinte, narra-se a visita de um grupo pequeno de turistas à Casa (de Dom Inácio) depois de as denúncias virem à tona e de João de Deus já não mais estar presente em seu santuário. Se, no passado visto no capítulo um, o leitor é apresentado a um lugarejo inóspito onde João atendia seus pacientes no início de seus trabalhos; o capítulo seguinte mostra o grupo de turistas vagando por um centro de cura bonito e bem cuidado localizado no bairro mais rico da cidade goiana; mostra os turistas meio que sem rumo na cidade de Abadiânia (agora um núcleo urbano com aproximadamente 20 mil habitantes).
Esse contraste entre presente e passado continua durante os demais capítulos de A Casa, sendo acrescidos outros contrastes a este, o que, como já dito, representa a vida contraditória e incongruente de João de Deus. Assim que é narrado um momento em que João opera algum paciente que dá seu testemunho de cura, há um corte seco (quase que cinematográfico) para outro momento das consultas do curandeiro: o momento em que ele chamava mulheres e meninas (sozinhas) para sua sala privada e abusava sexualmente delas...
Sempre que tinha vontade de comer porco ou de ir contra algum dos interditos da sua doutrina, ele suspendia a regra temporariamente.
Além disso, Felitti se esmera em deixar claro, além das inconstâncias do vai e vem narrativo que intercala presente e passado, novo e velho, auge e decadência, as contradições da vida de João de Deus. Ao mesmo tempo que o famoso curador realiza inúmeras cirurgias espirituais (centenas por dia) com a ajuda de espíritos incorporados por ele; João corre para esconder um câncer grave que o corrói e que, se descoberto pelos fiéis, poderia atrapalhar sua imagem. Ao mesmo tempo que ele cria regras para os visitantes da Casa, como o fato de não poder comer carne de porco até algumas semanas depois da visita à Casa (regra quebrada por ele sempre que desse vontade de carne de porco), ele também realiza ações que contradizem suas próprias regras.
Enfim, Chico Felitti constrói uma narrativa irônica e muito visual, utilizando-se de duas estratégias principais para que isso aconteça: a mais óbvia - inserindo imagens que ilustram as narrações do livro; e, em segundo lugar, caracterizando muito bem os locais por meio de adjetivações e da inserção de si em momentos chaves na narrativa. O autor, ao narrar uma história repleta de contradições, usa do contraste entre um evento e outro para representar as incongruências da vida de João de Deus.
Mas e aí, vocês gostam de livros não-ficcionais como A Casa? Já leram? Se sim, conte o que achou; se não, é uma ótima indicação.
Até a próxima!
Leonardo.
@leonardojrod
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